Quando o Lucas completou um ano cortamos a pílula. Cresci sem irmãos por perto e não queria o mesmo pro meu filho. Ele já tinha a Bruna, mas 20 anos mais velha, está na categoria “irmãe”. Ela apoiava, o Sergio se animou e quatro meses depois eu estava grávida de novo. Fiz um teste de farmácia e deu negativo. Comprei o segundo, e também deu negativo. Fui ao laboratório colher sangue. Era sábado e o resultado só viria na segunda. Comprei o terceiro teste sob protestos do Sergio. Em vez de grávida, ele achava que eu estava louca. Mas… voilà… finalmente os dois tracinhos! Eu estava mais atrapalhada que o normal, mais engraçada que o normal, e quando virava rápido na cama sentia que minha barriga estava descolando. Só tinha me sentido assim quando esperava o Lucas. Era claro que eu estava grávida!
Em vez das reunioes no Gama, das infinitas leituras de relatos de partos, do acompanhamento em tempo-real da lista Materna: o mestrado, os recursos educacionais abertos, o Lucas. Fiz um mês de ioga pra gestantes e nunca mais consegui aparecer. Por mais de sete meses só lembrava que estava grávida quando alguém me dava lugar pra sentar ou sorria na rua sem motivo aparente. Mas na 28a semana de gestação o Pedrinho (que ainda era Gabriel) sentou e virou o centro da minha atenção.
“Ainda é cedo”, me disse a Ana Cris, parteira querida que já estivera no parto do Lucas. “Ele vai virar!” Parte de mim confiava nisso, mas algo me dizia que não ia. 32 semanas e o danado sentado. 34 semanas, contraçoes bem fraquinhas de 30 em 30 minutos, e o danado sentado. O Lucas já tinha nascido antes do tempo, com 36 semanas, e era bom tentar segurar o Pedro (que já era Pedro) um pouco mais. Fiquei em casa, deitada. Só saia pra tentar ajudar o pequeno a virar: acupuntura, moxabustão, banho de ofurô.
Com 35 semanas e 6 dias, contraçoes fraquinhas de 20 em 20 minutos. Acordei vomitando – um dos sinais de trabalho de parto do Lucas – e fui ver a Andrea, obstetra querida que também acompanhou o primeiro parto. Eu estava com 1 cm de dilatação e o Pedro continuada sentado. A Andrea tentaria uma manobra externa naquela semana, virando o nenê com suas mãozinhas por fora da barriga, mas quando ela encostava em mim vinha outra contração. O risco de estimular o trabalho de parto não compensava. O melhor era continuar deitada, pra que ele não fosse prematuro. “A literatura médica recomenda cesárea em caso de nenê pélvico (que não está de cabeça pra baixo) e prematuro”, disse a Andrea. “Mas se vocês quiserem, podemos tentar um parto normal. É seu segundo filho, o Lucas nasceu bem com 36 semanas…”. Na verdade, não sei bem se foi isso que ela disse. Mas com certeza foi algo parecido. A palavra cesárea me tirou os sentidos. Não era possível! Depois de um parto natural tao bacana eu não queria uma cesárea. “Mas não seria desnecesárea, seria uma cesárea necessária”, as amigas tentavam me animar. Eu sei que sim. Mas assim mesmo estremecia ao pensar nela. Foi aí que me dei conta de que o parto normal não era só militância, pelos abusos cometidos no Brasil. Mas um pavor. Eu suava frio de pensar em alguém cortando a minha barriga, nos pontos, em cuidar de um nenê num pós-operatório. Eu não queria uma cesárea de jeito nenhum! Desnecessária ou necessária, eu não queria passar por ela.
Foram dias muito difíceis. Encontrei pouca coisa pra ler, não conseguia conversar com ninguém direito. Me sentia bastante sozinha naquela angustia toda. Desde que saímos do consultório da Andrea o Sergio era claro: a médica é que precisava saber como seria o parto, e se o melhor pro bebê fosse a cesárea deveria ser uma cesárea. Parte de mim concordava. Parte de mim queria sair correndo. E outra parte insistia que mesmo um nenê pélvico prematuro deveria nascer naturalmente.
Decidi escrever pra lista Materna. Adiara por vergonha. Eu tinha desaparecido por dois anos e ia chegar pedindo apoio… Escrevi! As respostas foram muitas e todas elas animadoras. Reli um email da Ana Cris, das 32 semanas, que dizia que se o nenê não virasse na acupuntura, a Andrea viraria no consultório. “É bem tranquilo, a Andrea é boa disso!!! E se for o caso, parto pélvico normal, minha filha, você é boa disso!!!!”. Deu uma baita força. E lendo e relendo as respostas, decidi procurar em inglês. Será que encontraria algum texto, algo mais sólido? Encontrei O TEXTO: “Hands off that breech!” O resumo, pelo menos na minha cabeça: “se o trabalho de parto do nenê pélvico evoluir bem, sem nenhuma intervenção, vai dar tudo certo. Se aparecer algum sinal negativo é melhor não arriscar e cortar a barriga”. Pronto! Eu precisava de algo bem definidinho assim pra minha cabeça confusa. Fui dormir aliviada.
No dia seguinte, minha mãe apareceu em casa. Me convidou pra cortar o cabelo, numa tentativa de me animar. Fomos a um salão do do ladinho de casa, passamos o dia juntas e umas 20h ela foi pra casa dela, do outro lado da cidade. Eu sentia vontade de pedir pra ela ficar, mas não tinha nenhuma razão concreta…
Coloquei o Lucas pra dormir e estava na sala conversando com o Sergio quando decidi anotar o horário de uma contração. Ela continuava bem fraquinha, mas parecia estar mais frequente. 22h41. Anotei outra às 22h52. Percebi um pequeno sangramento, tomei um banho rápido e anotei outra às 23h02. Telefonei pra Andrea. “Estou em um parto aqui no São Luiz”, ela me disse. “Se achar que vai engrenar, vem pra cá e avaliamos”. Decidi contar um pouco mais. E quando deu meia-noite, telefonei pra Ana Cris, só pra ela ficar ligada,; vai que… “Querida, o parto do Lucas foi rápido. Se você teve sangramento e está com contração de 10 em 10 acho melhor ir pro horpital”. De fato, foram 4h30 de trabalho de parto ativo da primeira vez. Mas as contraçoes estavam taaaaaao fraquinhas… Não parecia sério. O Sergio me estimulou a aceitar o conselho da Ana Cris. Telefonamos pra Maria Lucia, irmã dele que mora no mesmo prédio que a gente, e ela desceu pra ficar com o Lucas que dormia tranquilamente.
Entramos no carro e na esquina de casa eu queria voltar. “Tá vendo? Passou! Não to sentindo contração nenhuma. A gente pode voltar.” A sensatez do Sergio insistiu que não custava nada ir até o hospital. Se fosse alarme falso era só voltar pra casa. Lembrei do pediatra. A experiência com o Lucas no hospital tinha sido ruim porque nosso pediatra não chegou. Não podia acontecer de novo! Liguei em todos os números e nada! Pra completar, eu sabia que ninguém chegaria ao hospital se a coisa fosse mesmo pra valer. Minha mãe e a Bruna, que acompanharam o parto do Lucas, estavam muito longe. Seria rápido e elas não chegariam. O Sergio tem pavor de sangue, não assistiu o primeiro parto e já estava certo que não assistiria o segundo também. Eu pensava no pediatra do hospital tocando o terror, na cesárea, em estar sozinha durante o parto e entrei em pânico! A Andrea telefonou pra saber se eu ia pro hospital. Atendi chorando e ela percebeu. Disse pra eu ligar quando chegasse que ela me encontraria na recepção.
Comecei a preencher a ficha entre uma contração e outra e a Andrea apareceu. Que abraço terapêutico! “Que bom, querida! Vai ser hoje”, ela disse naquele tom de fada. “Eu não consegui falar com o pediatra”, pude responder. “Quer que eu tente outro?” Eu queria muito e ela conseguiu. Que alívio! Decidi telefonar pra Marcella, amiga-irmã que mora no Brooklin, pertinho do hospital, e ela foi me encontrar. Tinha pediatra, tinha a Marcella, tinha a Andrea, a Ana Cris estava chegando. Tudo começava a ficar bem. A Andrea fez o toque e eu estava com 7 cm de dilatação. Tudo tão ameno, contraçoes tão levinhas… nem dava pra acreditar. Chatices do São Luiz me prenderam por uns 20 minutos. A Ana Cris chegou quando eu já estava na sala de pré-parto. A Andrea fez outro toque e já eram 10 cm. Nisso a bolsa estourou. Aí… minha nossa… palavras não vão dar conta… Um tsunami passava pelo meu corpo a cada contração. Doía muito! Eu sentia muita vontade de fazer força! Eu ggritava muito! E oito contraçoes depois (segundo a Ana Cris) ele estava nos meus braços. Rápido assim, fácil assim. Algumas dessas contraçoes foram no pré-parto, outras no corredor, as últimas na sala de parto prateada. Sei que muita coisa passou na minha cabeça naquele momento. Só me lembro, com extrema clareza, de ter pensado nos partos pévicos que li em “A Tenda Vermelha” (livro muito bacana que a Lia me emprestou durante o repouso, pena que está esgotado). A Andrea perguntou se eu queria ficar de cócoras. Pensei que não dava tempo porque ele já estava saindo, mas só consegui responder um ríspido “não”. Senti cada parte do corpinho do Pedro saindo de dentro de mim. Primeiro o bumbum, depois as perninhas, depois o resto do corpo. Tudo muito rápido. Tudo muito intenso. Eu sentia calor e a camisola do hospital incomodava; mas eu também sabia que tirar a camisola ia atrapalhar. De vez em quando via o rostinho assustado da Marcella. De vez em quando falava com a Andrea ou a Ana Cris em monossílabos. E com muita força, com muita naturalidade, com muita rapidez, sem nenhuma intervenção, à 1h19, nasceu meu Pedro-Pelvico!
Ele nasceu quietinho e eu percebi alguma tensão no ar. Sabia que estava tudo bem com aquela coisinha pequena, cheirosa e molinha, mas disse que podiam tirar de perto de mim pra examinar se quisessem. Quando a pediatra pegou o pequeno, ele resmungou. Ela disse que nesse momento ficou tranquila porque sabia que estava tudo bem. Ela se moveu em direção a uma bancadinha de frente pra maca onde eu estava e eu sentei pra acompanhar. Alguém fez piada: “como assim alguém a acaba de parir e já se mexe desse jeito?” Eu estava ótima! Não tinha dor nenhuma, nenhum cansaço. Estava feliz e tranquila. Tirei a camisola porque não aguentava mais aquele treco me apertando e vi o Sergio fantasiado com a roupa de hospital e um olhão arregalado. Ele tinha decidido assistir o parto. Nunca vou ter a dimensão de tudo que ele superou pra tomar essa decisão. Deu uma olhada geral e me perguntou: “Nasceu? Foi normal?”. Respondi e apontei para onde estava o Pedro. Ele pegou o pequenininho e me devolveu. Que momento mais indescritível… Antes de meia hora de vida ele sugou com força, como tem feito até hoje. Aos ciquenta dias, Pedro engorda em média 45 gramas por dia, pendurado no peito da mamãe. E quando deita de barriga pra cima abre cada perna pra um lado, não deixando dúvidas de que esteve sentadão na barriga!
Nem sei dizer o que foi participar desse momento. Me deu vontade de tentar dizer, escrever… 🙂 E por mais que eu tivesse a cara assustada por ver tudo aquilo, o que eu senti depois foi coragem. Sempre fui medrosa com dor, e hoje tenho certeza de que, quando engravidar, vou me preparar para um parto natural 🙂 Mesmo sabendo que eu não sou tão raçuda quanto a Bi!
Amo vocês, lindinha
Tao raçuda quanto a Bi… Como assim? Foi na sua carinha que eu vi o “commons” da força feminia que citei no comentário pra Ana. OBrigada por dividir comigo esse momento, Má! Te amo.
Bianca,
Acho que já disse da importância desse relato como um antídoto nessa rede cheia de todo tipo de bobagem sobre parto — que é um reflexo de como o assunto ainda é oscuro nesse país que pare tanto.
Mas tem uma coisa que seu texto (tão comovente, cumadre) ensina que esperolembrar sempre. Você escutou você mesma, Bianca, apesar de todo o barulho em volta. No fundo, com toda a incerteza e insegurança do mundo você sabia os passos a seguir e seguiu. Sorte do Pedro, sorte do Lucas e do Sergio, de você mesma (da sua barriga!) e de nós todas nós que ficamos um pouco mais valentes, mais teimosas, mais sabidas coma chegada do Pedro Pélvico.
Gracias!
Ana, querida,
Tenho acreditado cada vez mais que essa valentia é uma espécie de commons (http://en.wikipedia.org/wiki/The_commons), algo que pertence a todas nós, mulheres, uma herança comum.
Agradeço a você e a cada uma das outras mulheres lindas com quem tenho o privilégio de conviver por partilharem dessa valentia comigo!
beijo enorme